1. Um pouco de ficção
A história até agora:
i. O enigma
O sol caiu em um laranja rosado. Julia, no entanto, permaneceu entristecida. Deveria ser um dia feliz, mas era a pior das datas. Amuada no canto do quarto, seu corpo se enrijeceu em uma posição semifetal. A garota apertou aos dedos nas mãos, formando punhos. Às vezes, ela precisava de contorno para lembrar que não entraria em combustão espontânea. Nesse momento, um cobertor não ajudaria, então ela arriscou um pouco de dor e tentou afastar seus piores pensamentos.
Em dias comuns, Julia gostava dos poentes outonais. Ela admirava em especial as luzes amareladas dos dias em que a temperatura não era muito alta, mas em que ainda assim o sol teimava em aparecer. Hoje seria um daqueles dias perfeitos para investigar o ninho de sapos que tomava conta do terreno baldio no final da rua ao lado. Era uma família, que tinha pequenos sapinhos saltitantes; eles gostavam de iogurte, como ela tinha descoberto. O dia também contava com a temperatura e a aura ideal para descobrir tranqueiras esquecidas nas caixas lacradas no sótão. O truque para não ser pega pelos seus pais: bastava como colocar tudo de volta, e tentar não rasgar a fita adesiva que fechava o papelão.
Essas memórias eram importantes para ela, mesmo porque apenas lembrar-se dos acontecimentos cotidianos nunca era suficiente. As lembranças podiam ser um engodo da mente, uma versão dos fatos. Quando pegava algo nas mãos, essas coisas se tornavam diferentes: para ela, eram mais vivos que as suas lembranças. Aquele seu primeiro desenho não era apenas uma tentativa de bola que ela tinha apelidado de “gnomo que mora do lado”, conforme sua mãe tinha descrito no papel, atrás. A pintura se tornava o gnomo, e ela quase podia lembrar-se dele, de uma maneira um pouco débil, claro. Era azul e tinha um narigão. Ela adorava conseguir cavar o cérebro para ter a memória mais clara, vai que o gnomo ainda morava perto.
Não que suas lembranças não fossem o suficiente, mas elas cobriam mais uma visão dos fatos mais recentes. Veja, como narradora, eu posso saber o que se passa na mente de Julia, antes mesmo dela saber, mesmo a qualidade de suas memórias. Também posso entender onde seus pensamentos juvenis a levariam no futuro, quando estivesse mais madurecida. Assim, a posição em que me encontro para falar essa história, vem em um tom de privilégio. Para você, que lê e não precisa viver a história de Julia, o conto também ganha mais nuances do que teria se ela estivesse contando o que lhe ocorreu, na época que os eventos se passaram. Mesmo assim, ainda é a vida de Julia, e poderemos, juntos, compreendê-la com nosso olhar mais distanciado, e com meu olhar mais adulto, talvez seja essa a palavra certa.
Por exemplo, ela não se lembrava de ficar de pé pela primeira vez, nem da sua primeira vitória à mesa de jantar, quando conseguiu colocar a comida na colher sem deixar tudo cair. Mas, sim, podia visualizar com perfeição como amava o cabelo todos cacheado da sua amiga Bárbara, além de seus olhos redondos, e da maneira feminina como ela se sentava. Julia não se sentia feminina assim.
Mas tinha outras qualidades. A menina sabia todos os códigos de todos os fatalities, e adorava se recordar da cara meio dura e meio invejosa de Jorge, quando ele perdia. Seu amigo gostava mais de jogar do que de ganhar, mas perder consecutivamente podia deixar até o mais fofo dos seres um tanto mais arisco. Mas eu sei de tudo isso perfeitamente, e de como essas coisas lhe faziam sentir. Então, façamos um acordo: nosso enredo é o do de Julia, contudo, de nosso pedestal, percebemos mais do que ela podia. Assim, depois dessa breve interferência, voltamos àquela passagem na vida da menina, que colocaria todas as coisas em movimento, e em um redemoinho.
Sua mãe não apreciava quando ela passava muito tempo escondida entre as relíquias do passado, em meio aos caixotes velhos, mas ela teria aprovado a expedição dos sapos, ou o tempo gasto fazendo troça com os amigos. Pelo menos, é o que ela imaginava que sua mãe diria. E ao se lembrar disso, até lhe parecia injusto que o dia e o ambiente não compartilhassem do seu ânimo. Se Julia tivesse que escolher o clima ideal para o dia de hoje, seria nem frio nem quente, cheio de trovões seguidos de nenhum raio, apenas os barulhos, mas sem uma luz para alumiar o firmamento. E um céu sem lua, ou sol, ou estrelas. Ele seria estático, nostálgico do tempo que em astros ainda não o povoavam. Não seria um dia claro, nem escuro. Nem cinza. Seria aquele tipo de marrom escuro que você atinge ao misturar tintas demais. Aquele desapontamento ao descobrir que nem sempre mais cores significam mais cores.
Naquele dia, o laço na sua cabeça fez coçar seu couro cabeludo. Seus cabelos castanhos estavam domados no penteado apertado demais, criado pela sua avó. “Sua mãe teria gostado de te ver bonita”, a avó comentou enquanto passava os dedos nodosos nos fios de Julia. Ao menos uma pessoa parecia satisfeita com o vestido retrô um pouco brega e o baixo salto apropriado a uma pequena dama, que a fazia enganchar pela rua. Crescer sempre pareceu à menina uma tarefa divertida: aos poucos, ela conseguia vencer novos pequenos desafios, e sua mente compreendia coisas que antes lhe seriam impossíveis. Porém, ao se ver no espelho pela manhã, a garota considerou que amadurecer não era tão gostoso quanto parecia. Era uma armadilha, na verdade. Seja o que os outros esperam que você seja, mesmo nos momentos em que tudo o que você queria ser era um gafanhoto sem preocupações, sem passado, sem futuro. Especialmente sem o salto. E a pessoa que ficaria feliz com tudo isso, ponderou Julia, não era a sua mãe, definitivamente. Pois esta estava mais à frente, no caixão cuja procissão embalava em marcha lenta.
Ela imaginou, mais cedo quando a caminhada começou, que a lentidão a deixaria ainda mais desconfortável, ou com raiva e desdém. Mas não, ela não sentiu mais nada, ou não sabia como se sentir, ou sentia tudo ao mesmo tempo. Como um buraco negro que sugava a energia do universo ao redor, algo dentro dela enterrava suas emoções em um local desconhecido e misterioso. E quem sabe era exatamente isso que permitia que ela colocasse um pé depois do outro. Respira. Um pé depois do outro.
Contudo, ela entendeu que o pior ainda estava por vir. Julia não estava ansiosa em ver a terra caindo em cima da cama de madeira da sua mãe. Essa era uma visão tão inevitável da condição humana, mas também uma que ninguém nunca deveria contemplar. Era o exemplo máximo do paradoxo da nossa condição: começamos como belos e cheios de potência, terminamos como comida de vermes. Julia não queria esse momento, o de dizer adeus de verdade; seria a hora de aceitar que certas coisas na sua vida sempre estariam sob uma mortalha; como ruínas, que vão se desgastando com o tempo.
O tempo esfacela tudo. Até mesmo o asfalto da rua, um pouco rachado, e as folhas que brilhavam em laranja e vermelho antes de embelezarem o chão, e depois não existirem mais. Como se preparar para compreender de verdade a fragilidade da vida? O auge de seus 12 anos não tinha lhe cercado com nenhuma resposta sábia. Era, ainda, o momento de perguntas, e não de réplicas pungentes como qualquer verdade universal.
Assim, Julia percorria uma estranha peregrinação. Uma que não combinava com ela, nem com a sua idade, muito menos com a alegria que sua mãe a tinha ensinado. Ela preferia ficar parada em alguma sala, contando histórias. Relembrando as coisas boas e ruins. E, enquanto pensava, alternava o olhar entre a linha do horizonte, a sua família — algum membro às vezes olhava para trás encorajadoramente —, as árvores que rodeavam o cimento. Aos poucos, ela sentia que menos pessoas tentavam consolá-la, o que era reconfortador. Ela queria andar no seu ritmo, pisar onde ela mesma escolhia pisar. Ela se afastou o máximo possível, sem chamar a atenção dos adultos. E foi então que ela reparou um movimento estranho perto de seu ombro esquerdo.
Quando a garota deu uma olhadela para trás, ela percebeu um homem que nunca tinha antes conhecido. Realmente, ela pensou, assim em uma primeira olhadela, que ele aparentava um pouco estranho. Talvez pela sua maneira desajeitada de andar, que era marcada por um balanço rude e quase agressivo das pernas, que acabava em uma pisada intensa e cheia de afronta. Ela nunca tinha visto um passo tão decisivo antes, se o homem andasse diretamente para ela com certa ira no olhar, ela correria amedrontada para a outra direção. Era como se fossem passadas que marcavam a morte, bem mais do que ela tinha visto das ouras pessoas durante toda a procissão. Ele não parecia um lamentador, mas o próprio arauto da ameaça. O pensamento criou um arrepio na nuca dela, e uma pequena, mas provavelmente visível, convulsão nos braços.
E mais
o enigma - um amigo
Ela, contudo, buscando o mesmo tipo de ternura que viu em todos os caminhantes, prolongou seu olhar no sorriso do estranho. Era brilhante e acolhedor, dava um ar de galanteio ao homem, e tirava o foco de suas pernas. Talvez ele não fosse tão mal assim. Pré-julgamentos nunca são os mais corretos.
Pobrezinho, ela pensou. Ele anda broncamente, mas isso não significa nada, ele pode apenas ter um passo firme, a menina imaginou. Às vezes, as coisas não são o que parecem ser, Julia ponderou. Ela queria dizer que nossos preconceitos podem ser confundidos com intuição. Mas um deles vem daquilo que acreditamos ser a regra normal, enquanto o outro vem de um lugar mágico. Ou talvez os dois sejam o resultado de nosso instinto de sobrevivência. Ou, pelo menos, gostamos de tentar incluir os nossos devaneios atuais em pequenas caixas.
De qualquer maneira, seu primeiro impulso foi se retrair. Nem somente pela figura em si, mas pela situação como um todo. O que os outros pensariam se ela se atrasasse ainda mais para o funeral da própria mãe para ficar batendo papo com um homem de sorriso afetuoso e pernas estranhas? Sua avó a recriminaria para sempre, e seu pai ficaria entristecido. Sim, ela começou a ser fisgada pelos maneirismos não autênticos dos adultos. Mas toda vez que ela pensava sobre a realidade da andança, sobre a finalidade que aconteceria em seguida, o sorriso dele se tornava mais brilhante, e até as pernas estranhas pareciam caminhar em uma dança evocativa.
Ela distinguiu um de seus sentimentos, em meio ao turbilhão de possibilidades, um que estava mais pungente, mais presente: ela tinha medo de ver a mãe imutável para sempre, sólida, rígida, e (ela sim) sem brilho. Por isso, tinha escapado para o jardim enquanto os outros prestavam suas homenagens dentro da casa. Por isso, tinha se afastado da procissão. Por isso, aquele homem tão deliciosamente enredado no desconhecido a chamava. Pensando assim, era impossível resistir a uma conversa rápida, ela falaria, voltaria a ficar enterrada em si antes que alguém percebesse seu átimo de felicidade. Era possível. Era factível. Era irrecusável.
O primeiro passo foi o mais penoso e constrangedor. Como escolher um caminho. Será que a vida tinha idas e vindas? Ou somente idas e mais idas? O segundo, mais simples, e o terceiro foi decisivo. Ela se moveu tão graciosamente que nem parecia a Julia de sempre, como se flutuasse.
Ela não teve que esperar por muito tempo. Assim que percebeu seu movimento, o estranho sorriu:
— A menina quer fugir? — Perguntou o homem sem tirar a amabilidade do rosto. — Acho que a menina tem o direito de ficar amedrontada em um dia como esse. Mas também acho que a menina é mais forte e tem mais coragem do que pensa.
Os passos dele e dela se sincronizaram, como fazemos quando sentimos aquela empatia imediata com alguém. Julia já tinha escutado falar disso, e na verdade, tinha sentido a mesma coisa quando conheceu Bá e Jorge pela primeira vez. Também tinha escutado de seu pai que se você quisesse que alguém confiasse em você, poderia até produzir uma familiaridade, em imitar o ritmo e os gestos do outro. Era o que ela fazia quando queria escapar de uma situação constrangedora. Ela também ficou um pouco constrangida em imaginar que ele já sabia que ela adoraria escapar dali. Isso, porém, poderia ser atribuído ao fato de ele ser um adulto, e assim, mais sabido. Ou era o que todo mundo contava para ela quando se referiam às pessoas mais crescidas.
— Meu nome é Julia. Eu não quero fugir, só não quero andar junto com eles. Eu não tenho a mesma pressa.
— Claro, Julia. Nem toda lentidão é moleza. Todo mundo precisa acertar o passo de vez em quando.
O alívio acalmou ainda mais a passada da Julia. Todo mundo também precisa de colo, ela pensou. Ela coçou um pouco a cabeça tentando não desfazer o penteado, era um pouco complicado, visto que sua cabeleira adorava permanecer imponente e frisada para todos os lados. Apesar do salto e do laço ainda a incomodarem, pelo menos ela tinha um adulto que a entendia. Caminhar a dois era bem mais simples, e até o andar dele parecia menos com uma marcha.
2. Notícias
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